A prática da misericórdia é a verdadeira identidade do cristão. Mas como agir num mundo que, cada vez mais, exalta a liberdade de expressão, especialmente entre crianças e adolescentes, mas rejeita qualquer forma de correção fraterna? Como ser uma voz profética e misericordiosa em uma sociedade que não aceita ser contrariada, onde ter uma opinião diferente é, muitas vezes, tratado como sinal de inimizade?

Vivemos tempos difíceis, em que o diálogo é substituído por polarizações e a escuta cede lugar aos gritos. Um mundo cada vez mais influenciado por ideologias que, aos poucos, vão retirando Deus do centro da vida humana, tentando apagar qualquer referência de transcendência ou espiritualidade. Nesse contexto, ser uma voz profética não significa ser agressivo, mas permanecer firme na verdade, com amor e misericórdia, acolhendo sem omissão e anunciando sem ferir.
Vivemos hoje em uma sociedade profundamente marcada por uma crise de saúde mental, um fenômeno que vem sendo alertado por organizações internacionais e especialistas há anos. O aumento no consumo de medicamentos psicotrópicos e as estatísticas crescentes de suicídio, especialmente entre adolescentes e jovens, evidenciam a gravidade dessa situação.
Entre agosto de 2022 e agosto de 2024, o Brasil registrou um aumento de 18,6% no consumo de medicamentos voltados para a saúde mental. De acordo com um estudo que analisou dados de 616.101 pacientes, 74% dos medicamentos adquiridos eram antidepressivos, enquanto os ansiolíticos representaram 26% do total. Em média, cada paciente comprou duas caixas de medicamentos mensalmente . (CFF – Notícia, Levantamento aponta aumento de 18,6% no uso de medicamentos para saúde …)
Paralelamente, as taxas de suicídio entre adolescentes e jovens têm apresentado crescimento preocupante. Um estudo da Fiocruz revelou que, entre 2011 e 2022, a taxa de suicídio entre jovens brasileiros cresceu 6% ao ano. Ainda mais alarmante é o aumento de 29% ao ano nas notificações por autolesões na faixa etária de 10 a 24 anos durante o mesmo período . (Estudo aponta que taxas de suicídio e autolesões aumentam … – Fiocruz)
Esses dados refletem uma sociedade que, apesar dos avanços tecnológicos e do acesso à informação, enfrenta desafios significativos no campo emocional e espiritual. A desconexão entre as pessoas, o individualismo exacerbado e a falta de sentido e propósito têm contribuído para o adoecimento mental de muitos.
Nesse contexto, a prática da misericórdia torna-se ainda mais essencial. Ser misericordioso é ir além da compaixão momentânea; é estar presente, ouvir sem julgar, acolher sem condições e oferecer esperança a quem se encontra em sofrimento. É reconhecer a dor do outro e estender a mão, oferecendo apoio e solidariedade.
A Igreja está inserida nesta sociedade emocionalmente adoecida. Não podemos fechar os olhos e fingir que nada está acontecendo. De nada adianta discursos bonitos ou moralistas se não forem acompanhados de gestos concretos. A Igreja precisa ser, ela mesma, expressão da misericórdia divina – oferecendo amor, escuta, compreensão e apoio a todos que cruzarem o nosso caminho. Que nossas ações sejam reflexo do amor de Deus e contribuam, de forma real e sensível, para a construção de um mundo mais justo, solidário e compassivo.
Como Igreja, sejamos misericordiosos com as dores emocionais das pessoas. Precisamos ser humanos o suficiente para reconhecer que, em muitos casos, essas dores não são problemas espirituais ou falta de fé, mas feridas emocionais que as pessoas carregam. Vivemos em uma sociedade emocionalmente adoecida. Não podemos tratar dores emocionais como se fossem simples faltas de fé. Quando as dores emocionais não são tratadas com seriedade, elas só aumentam, e a pessoa se prende ainda mais em seu calabouço existencial, em suas feridas.
Um dos maiores erros de muitos pregadores e anunciadores do Evangelho é achar que podemos resolver problemas emocionais apenas com práticas espirituais. A espiritualidade é, sem dúvida, uma grande ferramenta e pode ajudar, mas não resolve a raiz do problema emocional. Às vezes, pode até reforçar crenças negativas. Precisamos ser humanos e misericordiosos para olhar para essa realidade emocional com amor, respeitando o sofrimento humano da pessoa.
Como padre e psicoterapeuta, falo com autoridade: questões profundamente emocionais não são curadas apenas com práticas espirituais. Não é em um retiro, em uma missa de cura ou liberação que as pessoas vão se curar de problemas emocionais profundos. Para mim. Os rituais podem funcionar como um bálsamo, mas não resolvem o problema na raiz.
Dependendo da complexidade da ferida, o processo de cura pode levar dias, meses, até anos, para ser totalmente curado e ressignificado. Ninguém consegue curar uma dor emocional em um único processo ou em um único retiro. Vamos acordar para essa realidade! Muitos pregadores não têm nenhum conhecimento sobre terapias, não sabem nada sobre a psicologia emocional, e tentam curar sem a preparação necessária para lidar com as causas emocionais.
Insisto tanto em trabalhar o tripé do ser humano porque somos seres multidimensionais. Temos uma dimensão física e corporal, que começa a ser formada desde a concepção. Temos uma dimensão espiritual, que começamos a entender por meio dos ensinamentos religiosos, mas também temos a dimensão emocional, que é, para mim, a base de quem somos. Somos seres puramente emocionais até os sete anos. O que isso significa? Significa que toda a base de quem somos, todo o nosso conhecimento e nossas crenças foram formados pelas nossas emoções. A criança é totalmente sensitiva, ou seja, ela capta as informações por meio dos sentimentos. Tudo o que ela sente é verdade para ela, pois não tem filtro nem senso crítico.
Todas as experiências emocionais vividas desde a concepção vão moldando quem somos. As questões emocionais que sentimos na infância são marcas profundas registradas em nós. São as nossas verdades, nossos sistemas de crenças. Precisamos ser humanos o bastante para entender a humanidade do ser humano, compreender suas emoções, vividas desde a concepção. Essas expressões são marcas que ele levará para a vida inteira.
É neste contexto que somos convidados a sermos misericordiosos. Olhemos para a humanidade da pessoa, vejamos suas dores e tratemos-nas com respeito e dignidade. Não devemos achar que tudo é um problema espiritual, pois, muitas vezes, é mais emocional do que espiritual.
Sejamos misericordiosos com a dor humana de cada pessoa que convive ao nosso lado. Sejamos humanos o suficiente para entender que cada ser humano carrega dentro de si uma carga emocional, dores e feridas que foram cunhadas desde a concepção, que eu chamo de “criança interior”.
A prática da misericórdia é, sem dúvida, a identidade cristã mais profunda e transformadora. Ela vai além de simples gestos ou palavras; é a expressão viva do amor de Deus em nosso mundo. Jesus, ao longo de sua vida, demonstrou essa misericórdia incondicional, acolhendo os marginalizados, curando os feridos e perdoando os pecadores. Ele nos ensinou que a misericórdia não deve ser apenas uma ação isolada, mas um estilo de vida que permeia todos os nossos atos e relações.
A misericórdia cristã não é baseada em mérito, mas em compaixão genuína. Não se trata de esperar perfeição, mas de oferecer amor e cuidado, mesmo quando a dor do outro parece distante ou difícil de compreender. Na sociedade atual, marcada por feridas emocionais e tensões profundas, somos chamados a ser instrumentos de cura. Como Igreja, nossa missão não é apenas pregar, mas viver e praticar a misericórdia, sendo presença transformadora nas vidas das pessoas.
Portanto, ao sermos misericordiosos, estamos, na verdade, refletindo a imagem de Cristo, que se fez um com a humanidade e, com gestos concretos, revelou a profundidade do amor divino. A prática da misericórdia é a nossa maior identidade como cristãos e é por meio dela que podemos transformar o mundo, trazendo luz, esperança e a verdadeira cura para as feridas que todos carregamos.
Que, ao vivermos a misericórdia em nosso cotidiano, possamos nos tornar canais do amor de Deus, acolhendo as dores e sofrimentos alheios, e sendo instrumentos de verdadeira transformação e reconciliação. A misericórdia é a chave para construir uma sociedade mais justa, humana e cheia de compaixão.